Sua fragilidade era palpável, como se ao menor esforço ela fosse quebrar. Sua inocência era visível, sua face lembrava antigas pinturas de anjos risonhos, ela transmitia paz, uma paz que incomodava. Era uma garota comum de uma cidade do interior. Tinha muita beleza escondida por traz da simplicidade que lhe fora imposta. Era simples porque não conhecia outra maneira de ser.
Gostava de sua cidade porque nunca havia saído dali. Ao contrario da maioria das jovens, não tinha o costume de sonhar, contentava-se com sua realidade. Ela observava de longe os risinhos e suspiros das garotas olhando revistas de moda, sonhando com a cidade grande, achando que roupas modernas as tornariam moças da cidade. Ela apenas observava, pois não compartilhava as vontades, jamais sonhou em ir para a cidade grande, também não tinha medo, para ela cidade grande era como lenda.
Ouvia sempre seu pai criticando as garotas:
- Passam maquiagem como se fossem mulher da zona e isso para ir ao colégio, é uma pouca vergonha, fico me perguntando onde estão os pais dessas meninas que não vêem isso?
- É coisa de menina pai.
- Você que não me invente de passar essas coisas na cara...
- Eu não...
Ela não mentia, não sentia vontade de passar batom e nem nenhum daqueles apetrechos que via as garotas usando, era uma pessoa sem vaidade. Sua beleza era rústica e rústico era seu coração. Ela inteira precisava ser lapidada.
Havia terminado o colégio á dois anos, havia terminado porque todo mundo termina, sem honras e com algumas dificuldades. Não tinha amigos, os poucos com quem conversava na escola se afastaram assim que as aulas se acabaram e ela não sentia saudade, não conhecia esse sentimento.
Arranjou um emprego no pequeno mercado da cidade, mas não obteve permissão do pai para trabalhar.
- Vão sair por ai dizendo que não tenho condições de sustentar minha filha.
- Mas pai eu só queria ajudar.
- Ajuda ficando em casa e cuidando de tudo.
E era isso que ela fazia, cuidava da casa com perfeição. Afinal não havia muito que fazer era só ela e o pai. A mãe morreu quando ela ainda era um bebê, dela tinha apenas uma foto em preto e branco de uma mulher triste vestida de noiva e quase nenhum comentário do pai. Também ela não perguntava muito, às vezes se sentava na janela de seu quarto e ficava pensando em como seria ter mãe e sempre chegava à conclusão de que não saberia ser filha.
Seu pai era um homem digno e trabalhador, e como quase todos os homens da cidade era também um homem rústico. Não sabia demonstrar seus sentimentos, sentimentos que nem mesmo ele entendia, apenas sentia. Desde que a mulher, Mara, partira fora dominado por uma grande tristeza que ele traduzia como rudez. Era um bom pai ao seu modo, um pouco ultrapassado em termo de valores e educação, porem um bom pai, nunca deixava que nada faltasse a sua única filha, a única coisa que não sabia dar era carinho e tão pouco ela sabia receber. Amavam-se, pai e filha, um amor que o outro desconhecia, pois cada um amava sozinho.
Naquela tarde sentia-se estranhamente vazia, sentou-se a janela como de costume e ficou observando as outras garotas. Estavam radiantes com maquiagens e roupas coloridas. Pela primeira vez ela parou para observar o vazio de ser o que era, aquele estranho vazio sempre estivera presente sem que houvesse percebido, talvez aquele vazio fosse ela mesma. Pela primeira vez ela tentou se achar e percebeu que não era nada.
Levantou-se cuidadosamente e dirigiu-se ao quarto que um dia fora de seus pais. Desde que sua mãe morreu seu pai preferiu dormir no quarto de hóspedes e manter o antigo quarto como era, ela nunca entendeu porque e também nunca questionou. Eram 14 horas, o sol penetrava pelas frestas da velha janela de madeira tornando a poeira visível. Ela nunca havia se atrevido a entrar naquele quarto, às vezes percebia que o pai ficava horas trancado lá dentro e sempre voltava com os olhos vermelhos, mas também era uma pessoa desprovida de curiosidade.
Percebeu que era desprovida de muitas coisas, talvez por isso se sentisse vazia. Mas agora uma inquietude dominava seu ser e ela decidiu que deveria entrar. Abriu as janelas rangentes de modo que todo quarto foi iluminado. O quarto era lindo, como ela pode passar tanto tempo sem saber que havia um quarto tão lindo em sua casa. Para sua surpresa não estava tão sujo, apenas um pouco empoeirado, então ela soube o que o pai tanto fazia lá dentro, conservava tudo como era.
Havia uma colcha vermelha na cama, um enorme lustre, belos moveis e um imenso guarda-roupa. Ela nunca havia visto tantas coisas luxuosas na vida. Na cômoda diversos frascos de perfumes, que ela abriu um por um maravilhada com os aromas diferentes. Abriu a primeira gaveta e viu inúmeras maquiagens, tantas que deixaria qualquer garota daquela cidade enlouquecida, qualquer uma menos ela.
Havia também um imenso espelho numa das paredes, por um momento ela hesitou em olhar, se sentia tão vazia que teve um súbito medo de não ter reflexo. Caminhou com passos lentos, e a imagem a entristeceu. Pela primeira vez se viu inteira e era tão sem vida quanto uma folha morta no outono, tão triste quanto à foto de sua mãe. Os cabelos loiros expressavam toda sua fragilidade, pareciam palha, a pele era tão branca, seu corpo magro estava coberto por um tecido sem cor. Era isso que ela era uma pessoa sem cor.
Seus olhos eram de um azul profundo, e apesar de belos se perdiam naquela imensidão de falta de cor. Aquele azul era muito bonito para aquele rosto. Por um momento ela pensou em usar as maquiagens da mãe, mas percebeu que seria um desperdício. Fechou as janelas, saiu calmamente e voltou ao seu quarto. Sentou-se a janela novamente e se entregou ao seu habitual vazio. Ela ficou em paz, e aquela paz incomodava.
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"Desprovida" é um texto um tanto poético que comecei a escrever e decidi compartilhar. Ainda não sei como e quando vou continuar, mas quem sabe agora me inspire.
Obrigada a todos!
Eu realmente gostei muito desse texto. Muito lindo, muito legal e gostoso de ler. =]
ResponderExcluirVocê tem o dom. Continua esse texto, por favor? ^^
Beijo!
Raquel - PDL
Prometo que vou tentar...
ResponderExcluirapenas pq vc é muito querida rs
Ahhhhhh Claudinha, que texto lindo, um pouco triste , juro que quase chorei, adoraria ler o resto, vc tem muita sensibilidade pra escrever. Parabéns
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