A tarde passou da forma mais inquieta
possível. Ela pensava e se remoia. Não sabia se iria a esse encontro. O beijo
foi sem dúvidas a coisa mais incrível que aconteceu em sua vida até então. Nunca
havia sentido uma coisa tão inexplicável. Fernando parecia agora alguém muito
mais real pra ela. Além de real agora dividiam um sentimento, compartilhavam um
segredo, um beijo, um campo de flores e possivelmente um balanço. Cecília não adaptada
a romances de alguma forma sentia que aquilo era especial.
Dedicou-se a seus afazeres,
organizando o jantar com a mente em outro lugar. A mente em Fernando. Não sabia por
que, nem como explicar, mas sentia que pelo resto da sua vida teria sua mente em Fernando. Sentia que
mesmo que algo ruim acontecesse nunca mais conseguiria expulsa-lo de seus
pensamentos. Da mesma forma sentia uma angústia, um medo. Medo de ser
esquecida. Medo de estar se iludindo, de Fernando partir de sua vida. Sua vida já
não faria o menor sentido sem aquelas emoções e ela estava certa que somente Fernando
era capaz de desperta-las.
Serviu o jantar, absorta em
pensamentos, não tocou na comida. O pai logo se preocupou, mas preferiu
permanecer calado. Para ele mais valia o silencio do que a decepção, e no fundo
sabia que Cecília estava mudada. Sabia também que essa mudança acontecera no
dia em que a flagrou na praça. Aquele sem duvida foi a primeira vez que ele
olhou pra Cecília e percebeu que não a conhecia. Antes eram apenas dois seres
que não compartilhavam sentimentos, pois não os conhecia. Agora os sentimentos
que ambos exploraram os havia destruído qualquer aproximação. Não que um dia
tivessem sido realmente próximos. Mas em simplicidade compartilhavam assuntos,
coisas bobas e cotidianas. Agora Cecília parecia estar em outro mundo e ele não
sabia como resgatá-la.
Após o
jantar o pai como de costume ficou cochilando no sofá. Ela ainda incerta
resolveu sair. Depois de muito se preocupar com a aparência, entrou em seu novo
quarto, e pegou um dos vestidos de sua mãe. Cor de vinho, divino. Vestiu-se
apressadamente e saiu antes que o pai visse, pois não saberia o que responder
caso ele perguntasse aonde iria.
Com passos rápidos caminhou até o
balanço, já eram nove horas. Ela sentou e esperou que ele aparecesse. Descobriu
que a espera e a ansiedade é um veneno pra alma. Momento de espera, alma
inquieta. Medo e alegria misturados com a esperança de ver um ser que até pouco
não era nada e agora já era amado. Ficou a pensar no que Fernando significava.
Viu que era um significado enorme e complexo, que seu ser havia se transformado
por inteiro. Mais que isso, viu que seria capaz de mudar ainda mais se isso
significasse ter ele por perto.
9h15
Agora o coração já estava disparado. Mil
questionamentos. Aconteceu alguma coisa? Ele esqueceu? Se atrasou? Desistiu?
A espera, a incerteza, fere ainda mais
do que a certeza da ausência. Na espera ficamos a divagar sobre o que
aconteceu, e a mente humana tem o dom de esperar o pior. As nossas suposições às
vezes machucam mais que a verdade. Duro é quando depois que criamos uma ferida
aberta com as suposições vem o vinagre da verdade pra piorar tudo. Mesmo enlouquecendo
nossos sentimentos sempre
existe no mundo uma pessoa que espera a outra.
Cecília ficou divagando, o coração doía
no peito. Parecia que em seu peito batia um oco. Esperou em vão por quase uma
hora e ele não apareceu. Segurou também em vão as lágrimas que rolaram
insistentemente por sua face.
- Te odeio – falou baixinho tentando confortar
o próprio coração. Tentando enganar a si mesma. Tentando fugir.
Levantou, respirou profundamente e
voltou a sua casa. Ele estava brincando com seus sentimentos, e ela não sabia o
que fazer.
Correu pra casa e entrou rapidamente
em seu quarto. Chorou até que o sono a dominasse. Sonhou com o beijo. Pelo
menos no sonho Fernando a amava. Decidiu tentar esquecer. Fim. A ilusão que
mantinha acesa seus sentimentos estava agora ferindo sua alma.
Não poderia amá-lo, não poderia se
permitir sofrer.
Acordou cedo, como de costume. Os olhos
estavam vermelhos e inchados. Seguiu sua rotina na esperança que ela a levasse
de volta ao seu antigo estado de espírito.
Coração apertado, a vontade de chorar não
passava. Caminhou até a janela e lá chegando encontrou um envelope
Duas semanas, e ele não dera sinal de vida. Ela ansiava por vê-lo, mas não se atrevia a procurá-lo. O pai não comentava sobre o trabalho em casa e ela não ousaria perguntar. Talvez ele tivesse ido embora. Depois daquela tarde em que ele a viu cantando ela não mais conseguiu parar de pensar. A cena se repetia mil vezes em sua cabeça. Foram não mais que 5 minutos de conversa que a deixavam extasiada só de lembrar.
Êxtase, ansiedade, sentimentos complexos demais, confusos demais, ela até sentia náuseas. Estranho como não uma pessoa, mas apenas o fato de saber que ela existe pode trazer tanta inquietude num coração habituado a ser quieto.
Agora ela não era mais tão desprovida de vaidade, sempre na ânsia de vê-lo se arrumava um pouco melhor, passava perfume e o batom quase sem cor. Esperava que um dia ele fosse voltar a sua casa, nem que fosse pra falar com seu pai. Ou talvez não, talvez a conversa não houvesse tido o mesmo significado pra ele.
O pai pediu que ela levasse seu almoço até a marcenaria, com o coração inquieto na hora combinada ela saiu de bicicleta. O caminho não era longo, porém o sol a deixou tonta. Ao passar próximo ao roseiral da cidade, o cheiro lhe deu a sensação de estar distante. Ela abriu os braços. Chegou a escorrer uma lágrima de emoção, o doce cheiro, o vento nos cabelos. Liberdade. Sentida e não compreendida.
Se ele estivesse trabalhando com pai por certo estaria lá. Ao chegar ao galpão sentia seu rosto queimando, o coração acelerado. Tentando se recompor ela caminhou com passos lentos.
- Pai?
- Oi filha, entre. – disse ele saindo de um corredor de madeiras.
- Trouxe o almoço. – disse ela olhando em volta na esperança de ver Fernando.
- Obrigado!
- Pai o senhor não acha que precisa de um ajudante?
- Sim, eu contratei um.
- É? Eu conheço? – o coração ia saltar pela boca.
- Obrigado filha por sua preocupação e pelo almoço, agora vá pra casa. – ele havia ficado mais sério que de costume.
- Está bem, até mais tarde.
Ela saiu decepcionada, e seguiu seu caminho distraída com seus pensamentos. Quando passou novamente pelo roseiral, não sentiu a sensação de liberdade, não sentiu nada. Estava voltando ao normal.
Surgiu do seu lado direito uma flor vermelha, ela quase caiu da bicicleta, tamanho o susto.
- Desculpe, não achei que fosse se assustar.
Era Fernando, seus olhos se encontraram por um momento e Cecília pensou que fosse desmaiar. A alegria em seu coração foi tamanha que ela perdeu as palavras. A alegria tem dessas, envolve tanto a gente que nos deixa meio que parados no tempo. Talvez porque os momentos de alegria sejam tão raros que paralisamos um momento para quem sabe, aproveitar um pouco mais.
- Cecília desculpe. – ele agora parecia preocupado.
- Tudo bem.
- Estou trabalhando com seu pai, e aproveitei meu horário de almoço pra cochilar um pouco aqui no roseiral porque aqui é bem silencioso. Exceto por hoje.
- O que houve hoje?
- Estava dormindo quando ouvi um barulho de uma bicicleta se aproximando, olhei e era você.
- Desculpe eu não te vi.
- Eu sei, você estava linda com os braços abertos.
Parecia que seu mundo de repente havia tomado outra tonalidade. Linda. Ela nunca fora chamada de linda, nunca elogiada. Muitas vezes sentia como se nem existisse.
- Preciso ir
- Ainda tenho alguns minutos de almoço, me faz companhia?
- Faço. – e pensou “Porque disse faço? Que loucura...”
Ela não sabia o que dizer, ou como agir. Caminharam sem conversar, ela observava o cenário a sua volta. Seria perfeito se ele tivesse algum interesse por ela. As rosas espalhavam um aroma profundo, o céu estava claro e sem nuvens, o caminho que se estreitava fez com que os braços se tocassem por um breve instante. Ela não sabia o que pensar. Ele agora parecia distante, sério. Ele a chamou de linda, mas agora não a olhava. Porque ele a deixava tão confusa.
O silêncio começou a incomodar, e ela pensou em voltar pra casa, quando ele segurou em sua mão. Ela nunca antes sentiu aquilo, um toque de carinho.
- Eu não queria te afetar com meu jeito, te fazer mal sabe?
- Mas não faz.
- Entenda Cecília, eu não sei ser bom.
- Comigo você está sendo.
- Só não sei até quando.
Ela sentiu uma amargura na voz dele, teve um mau pressentimento. Em sua mente confusa pensou em correr. Estava virando quando ele a tomou nos braços e a beijou. Um beijo profundo, intenso. Dizem que os beijos dão a impressão de que se está voando. Não para ela, aquele beijo lhe deu um toque de humanidade, a aproximou do mundo real.
Quando o beijo acabou, Cecília pensou que iria voar. Fernando não acostumado com pessoas tão sensíveis ficou sem reação. O melhor beijo é aquele que não esperamos, mas quando acontece, a gente sente que esperou por ele a vida toda.
- Agora preciso ir – disse ela sentindo-se queimar de vergonha.
- Desculpe, eu não quis te ofender.
- Não ofendeu.
- Então não vá.
Cecília não sabia o que fazer e sem conseguir pensar viu que fugir era sua única opção. Correu, pegou a bicicleta, mas antes olhou pra trás e viu que Fernando estava parado no mesmo lugar. Sentiu uma vontade de voltar e abraçá-lo, mas não tinha coragem pra isso.
- Cecília – ele gritou
- Sim.
- Te espero as nove no seu balanço.
Ela não conseguiu responder, apenas saiu rapidamente e voltou pra casa.
Ao chegar em casa ainda sentia seu coração acelerado. Sentou–se na janela na esperança de voltar a sua habitual paz. Agora era uma coisa antiga em sua vida, passado. Como aquele menino a deixava angustiada e alegre ao mesmo tempo? Como uma pessoa que mal conhecemos pode alterar nossa rotina?
Ela voltou pra casa ainda com o coração descompassado, nunca imaginou que teria medo de entrar em casa, mas ao ver que o pai estava na janela sentiu o corpo tremer. Nunca havia apanhado do pai, mas agora tinha certeza que iria levar uma surra.
Abriu a porta e surpreendeu-se com a voz tranquila do pai:
- Já estava preocupado.
- Pai eu só queria...
Ele a interrompeu levantando-se e a conduzindo pelo corredor
- Eu não quero mais falar nesse assunto está bem? Agora vá descansar, tivemos um péssimo dia.
- Na verdade eu queria...
Ele novamente a interrompeu, parecia exausto, seus olhos estavam inchados, e mesmo com toda a altura que tinha parecia um homem fragilizado.
- Filha, acho que agi mal, mas a partir de hoje o quarto de sua mãe é seu.
- Meu?
- Acho que ela gostaria que eu fizesse isso.
- Pai eu nem tenho como agradecer...
- Agradeça não me decepcionando como fez essa tarde.
- Fique tranqüilo eu...
- Boa noite.
Ele estava triste, mas a alegria que ela sentia a impediu de ver isso. Ela estava radiante e isso era algo inédito.
Correu para o seu novo quarto e se surpreendeu ao entrar, o pai havia arrumado tudo, trocado cortinas e lençóis, tirado a poeira. Ela ficou maravilhada e naquela noite dormiu profundamente, nunca havia dormido numa cama tão grande e tão macia. Naquela noite sonhou e quando acordou parecia que ainda estava sonhando, sonhou que o moço novo na cidade a havia beijado e foi bom, ela ainda não sabia como era beijar, mas nos sonhos tudo é possível.
Olhou no relógio e viu que já eram dez horas, o pai viria ao meio dia para almoçar e ela ainda não havia preparado nada. Como pode dormir tanto? Levantou-se apressada e viu um papel colado no espelho, a péssima letra do pai que ela bem conhecia:
“Não virei para o almoço”
Ela se sentiu aliviada, teria tempo para por as idéias em ordem, coisa que ela nunca precisava fazer antes, sempre tivera a mente tão vazia. Não sentia mais aquela paz, sentia-se inquieta com uma vontade de não se sabe o que. Mas sentia-se bem. Ligou seu rádio, a sua única conexão com o mundo já que televisão era raridade naquela cidade, e se permitiu viajar por alguns instantes, a canção por trás do chiado falava de amor, e naquele momento ela desejou ser amada.
Ela estava a cantar, cantava com a alma, cantar era sua única ligação com o mundo dos sentimentos intensos. Talvez porque sentir exigia uma profundidade muito complexa para quem desde cedo se adaptou ao vazio. Ela cantava sentimentos que não eram seus, que jamais ousara pensar na possibilidade de senti-los. Naquele momento era uma atriz explorando uma realidade que não conhecia, e explorava sem saber. Tinha uma bela voz, e também isso ela ignorava, nunca haviam te dito isso porque ninguém nunca a ouvira cantar.
Mas naquele momento de contato com sentimentos ele a ouviu. Ela de olhos fechados, pois assim os sentimentos se intensificam, não o viu chegar. Ele que chegava emburrado, ate esqueceu o motivo da birra quando a ouviu. Ficou ali parado a olhar pela janela da sala, enquanto ela cantava e dançava por entre os móveis. Quando conseguiu novamente raciocinar ele enfim conseguiu quebrar o encanto do momento:
- Você canta bem.
Uma frase tão simples pode causar sentimentos tão complexos em uma pessoa mais simples ainda. Ela ruborizou, e ficou sem jeito, não sabia ao certo o motivo. Fora pega desprevenida, num momento constrangedor, por um estranho. Mas ele já não era tão estranho assim, eles haviam se falado na noite passada, uma conversa pouco amigável. Ela havia ruborizado sim, pelo elogio que recebera e pela lembrança do sonho.
Ele ficou olhando e percebeu que ela não iria responder:
- Ei garota eu falei com você...
- O que? – ela parecia estar despertando de um transe.
- Você canta bem – repetiu ele rindo da falta de jeito dela.
- Muito engraçado. – disse ela agora realmente brava, ele havia invadido um momento intimo e ainda estava se divertindo. – já não se divertiu o bastante as minhas custas?
- Calma, olha eu não estou brincando não. – disse ele procurando palavras. – bom, mas como sei que você não vai acreditar deixa pra lá...
- Então diga o que veio fazer aqui? – disse ela tentando se recuperar, não entendia porque perdia tão facilmente a compostura perto dele.
- Eu vim falar com seu pai. – ele parecia contrariado.
- Ele não esta. – ela se domava e voltava ao seu estado neutro.
- Será que você pode me fazer uma favor?
- Sim
- Diga a ele que o sobrinho do seu Jeremias veio aqui hoje pra falar a respeito do emprego que ele me ofereceu.
- Você vai trabalhar pro meu pai? – disse ela querendo rir.
- Sim, ele ta precisando de ajudante e eu precisando de dinheiro. – disse ele emburrado. – Qual é a graça?
- Nada. Mas já lhe aviso que você com esse jeito todo, não vai se acostumar com trabalho pesado não.
- Jeito todo o que? - ele agora parecia bravo, e ao ver a cara de desapontada que ela fez sossegou. – Deixa pra lá vai, esquece.
- É só isso?
- Sim, obrigado Cecília.
- Como você sabe meu nome?
- Acho que seu pai te chamou em alto e bom tom lá na praça.
- Ah sim aquilo foi... – por mais que procurasse não encontrava palavras para expressar os sentimentos, sentir já era complicado, quanto mais explicar.
- Aquilo foi uma bobagem e as coisas que eu te disse ontem também. – ele pareceu arrependido.
- Foi tudo uma bobagem mesmo, eu sei que causei a impressão errada, mas por mais que você não acredite, aquela foi a primeira vez que fiquei conversando com aquelas garotas e a primeira vez que me vesti daquele jeito também.
Ele a olhou por inteiro, daria pra acreditar sim. Ela estava muito diferente, com uma camiseta enorme e uma calça cinza. Os cabelos desalinhados lhe caiam na face, ela não era do tipo que chamava a atenção, mas ele a admirou.
- Eu sei.
- Sabe?
- Sei, ontem eu estava tão frustrado com meus próprios problemas que não consegui te ver, digo, eu te vi, mas não da maneira correta.
- E eu não me mostrei da maneira correta.
- Podemos recomeçar.
- Podemos.
- Muito prazer meu nome é Fernando e eu sou novo aqui. – disse ele lhe estendendo a mão.
- Prazer meu nome é Cecília e eu não sou nova aqui...
Ela sorriu, um sorriso franco de quem realmente deseja sorrir, e ele correspondeu. Ficaram assim feito bobos sorrindo por um tempo. Estavam realmente cumprindo o combinado, pois se olhavam como se nunca tivessem se visto antes.